CD Marcenaria / Marcenaria - Por Luiz Domingues
Em "Guarânia", trata-se de fato de desse gênero musical sulamericano/paraguaio/guarany, mas claro, sob uma sofisticação instrumental que a faz mais parecer uma música do "Jethro Tull", tamanha a profusão de detalhes e pegada Progger Rock. Nesses termos, gostei muito do solo de flauta, executado por Claudia Rivera, uma instrumentista convidada especial da banda.E a letra/linha melódica e também a sua interpretação, eu diria, detém uma lembrança forte do trabalho do Zé Rodrix, ao meu ver, bem daqueles discos solo dele, dos anos setenta, que se o leitor nunca ouviu, conclamo-o a procurá-los no YouTube. É aquele toque de urbanidade que o saudoso, Rodrix, tão bem sabia dar como o seu recado e o Marcenaria parece ter recuperado tal prerrogativa, ainda bem.
A faixa "Vire o Disco!" tem na sua proposta uma crítica ácida, mas muito pertinente à inércia da atual juventude. Todo mundo com olhos e dedinhos que não desgrudam dos celulares, mas de conteúdo bom que tal interação sócio-tecnológica poder-se-ia resultar, não há nada, absolutamente nada! E nesse deserto de ideias, chega a ser indecente termos tanta tecnologia disponível para que a imensa maioria permaneça hipnotizada por futilidades múltiplas. Portanto, a metáfora proposta pela letra é muito boa, ao utilizar a imagem do velho disco de vinil e a sua inevitável necessidade gerada por obrigar o ouvinte a virá-lo na "pick-up" da vitrola, a cada término de lado executado.-"É hora de virar o disco, esse lado já se acabou. Levante o corpo do sofá e o braço da vitrola".Muito boa a mensagem, faça alguma coisa edificante, senhor "abduzido" das redes sociais! Musicalmente, essa faixa fez lembrar-me bastante o som da banda Prog Rock brasileira dos anos setenta, "Terreno Baldio", pela mescla de virtuosismo instrumental "Progger", com brasilidades. Sopros e violas caipiras passeiam o tempo todo, com muita desenvoltura.
A faixa seguinte, "O Trem" tem um sabor Blues, todavia pelo viés de um "quase" reggae. A proposta da letra lembrou-me o Zé Ramalho, de seus mais inspirados trabalhos e um solo de guitarra, de arrepiar, trouxe o elemento Rock, com muita força.
"Teste de Viola" é um tema instrumental e parece que o "Captain Beyond" foi tocar com violeiros caipiras, tamanho o peso Hard-Rock (em alguns trechos) e a realçar uma tremenda performance da viola. Um longo interlúdio, pleno de climas estimulantes, dá espaço para os solos."Fusa Roceira" tem uma base harmônica bastante sofisticada, com ótimos vocais em harmonia, percussão criativa e lembrou-me bastante os primeiros trabalhos do Alceu Valença, quando este era menos "Pop" e mais instigante como artista, eu diria. As intervenções de guitarra ao final, lembraram-me o som cerebral do genial guitarrista do King Crimson, Robert Fripp, e eu também gostei muito do final épico, que despertou-me a lembrança da sofisticação do "Wishbone Ash". Muito ba a inetrevenção com o piano, incluso."Pessoas de alumínio e cobre, presas de jacaré e pedra. Só para descobrir. Mais um ponto do encerado pra eu arrochar. Mais um ponto do mistério pra eu descobrir"...Uma letra que deixa bem clara a dicotomia da visão da vida moderna, pelo viés da sabedoria caipira. A pensar-se...
A canção: "Chuva", traz efeitos muito interessantes no seu início. Gostei de mais uma ação da onomatopeia neste disco, que fez-me recordar de uma linhagem melódica da MPB, que simplesmente não existe mais e até meados dos anos 1960, era ouvida em profusão no rádio e na TV. Gostei bastante da linha de bateria e baixo, com um sentido de preenchimento de espaços muito criativo. Fora as múltiplas convenções estabelecidas, super técnicas. Tem climas jazzísticos acentuados, igualmente.
Na canção, "Rinha de Galo", a proposta é aparentemente mais regional, com acordeon, mas o Marcenaria não abre mão de seu esmero instrumental e logo entram elementos experimentais diversos. Gostei muito de uma desdobrada rítmica proeminente, e logo a seguir, um solo de guitarra ultra influenciados pelos anos sessenta, que dá a impressão que guitarristas como Randy California, Mike Bloomfield ou Jorma Kaukonen, foram trazidos por uma máquina do tempo, direto do palco do Fillmore West, de San Francisco, em 1968, para gravar em estúdio com o Marcenaria. Muito legal. Ótimas as convenções finais e com o belo solo de sax, dobrado.
Na faixa seguinte, "Camping de Noel", é muito clara a semelhança com os trabalhos mais experimentais & psicodélicos dos primeiros discos dos Mutantes, com direito à robustez dos arranjos do maestro, Rogério Duprat. Mais uma vez, as vozes cumprem um belo trabalho em harmonia.
O Marcenaria é formado por: Anderson Ziemmer (voz, guitarra, clarinete e percussão), Augusto Miranda (voz, guitarra, viola caipira, violão e flauta transversal), Bruno Costa (sax soprano e tenor), David Forell (voz e bateria), Elton Amorim (baixo, violão, acordeon, piano e viola caipira), Paulo Costa (voz, clarinete baixo, clarinete soprano, sax tenor e percussão).
Além da versatilidade da banda, ainda foram convidados músicos para colaborar, casos de Claudia Rivera (Flauta Transversal), Clara Andrade (percussão) e Renato Amorim (guitarra).
No cômputo geral, trata-se de um álbum com excelente áudio, é moderno, com pressão e definição, mas a apresentar timbres bastante próximos de uma sonoridade mais "vintage" (viva!). A qualidade musical da banda impressiona muito, tanto no nível instrumental quanto vocal, além da elaboração de arranjos sofisticados e letras com poética muito além da pasmaceira pasteurizada, observada no panorama da música mainstream dos tempos atuais de 2017.